07 março

Há pétalas sob o sol

Algum momento presente.

Tão acolhedor era o cair da tarde sobre Beladona, que o sol e a lua pareciam dançar exibindo suas belezas sobre as ruas encharcadas naquela época do ano. As folhas amareladas das árvores que tentavam resistir ao inverno criavam uma malha macia e delicada sobre o chão, cobrindo o pouco do verde que restava e trazendo nostalgia ao coração dos mais velhos e encanto para os mais novos. “É a voz dos espíritos cantando enquanto buscam seu caminho.” diziam os mais velhos quando o vento chiava passando pelas frestas.


Esse mesmo chiado escorregou sobre uma porta de carvalho numa velha casa. O ruído ecoou sútil entre as paredes e chegaram como um cumprimento aos ouvidos de Diana. A garota até então mergulhada em seus sonhos despertou com a boca seca, seus olhos percorreram embaçados de um lado para o outro, flagrando apenas o cintilar trêmulo das velas que celebravam a véspera do Dia dos Mortos. Jogou a coberta para o lado e aceitando a insônia que havia se aconchegado a sua companhia, ela se levantou. Caminhou até o banheiro deslizando as mãos sutilmente sobre o pijama de seda, jogou água fria sobre o rosto tentando figurar em sua mente os pedaços emocionantes do sonho do qual havia despertado. Saiu pela porta até a janela e contemplou a bela paisagem monocromática composta pela neve fina que caia como algodão do céu e a escuridão que a noite trazia para o descanso. Ali, encostada na janela, ela sentiu um calafrio percorrer sua espinha, não do tipo que embrulha o estômago e acentua os sentidos alarmados, mas do tipo que excita e dispara o coração.

Seus lábios se fecharam contraídos, logo ela soltou palavras para si mesma, confessando um segredo. Suas palavras doces prometeram transcender não apenas o tempo, mas a realidade, enquanto seus sentidos amortecidos lhe proporcionaram um momento de devaneios, ela sentiu em seu âmago um calor familiar, como se alguém gentilmente a abraçasse por trás. Despertou atônita, sem entender o que estava acontecendo, seu olhar percorreu todos os lados que puderam alcançar e viram apenas o que já estava lá.

— Joana? — pensou ela. Levou a mão ao peito e agarrou forte o pingente que havia ganhado de aniversário da única pessoa que havia amado até então. Tentou se acalmar deitando outra vez, e fechando os olhos, tornou a dormir.

Algum momento passado.

Joana pareceu quase derrubar a porta do salão da faculdade quando passou correndo por ela, o segurança mal teve tempo de chamar sua atenção, e ela já dobrava a esquina do prédio em direção às canchas. Passou rápido por alguns grupos que estavam reunidos para as aulas de educação física, trombou em um ou outro aluno que estava em seu caminho, sem sequer se preocupar com represálias ou xingamentos. A jaqueta roxa e amarela voava em suas costas como uma capa, o jeans grosso incomodava, mas não impediam seus passos de serem formidáveis. Quando atravessou o corredor principal do campus, contornou a cantina onde um aglomerado conversava alto e comia, avistou os jardins. Alguns dos bancos que se dispunham aleatoriamente estavam preenchidos por casais e ávidos leitores, mas em um deles, uma moça quase esparramada de barriga para cima observava as nuvens que circulavam no céu. Ela se aproximou da moça.

— É um dragão ou um dinossauro dessa vez?

— Parece mais um trator — respondeu Diana com meio sorriso.

— Tantas formas magníficas para se admirar em nuvens e você vê um trator?

— Culpe as nuvens por serem tão óbvias, não meu raciocínio por ser tão rápido.

As duas riram. Joana sentou ao seu lado, enquanto Diana se ajeitava, as duas se encaram por um breve momento e carinhosamente se beijaram.

— O que aconteceu?

Joana estava com os olhos carregados logo que descolou os lábios de Diana.

— Pensei muito em nós por esses dias.

— Você vai terminar comigo? — perguntou Diana assustada. Joana apenas sorriu.

— Não. Eu te amo, Di! — Ela puxou uma caixa do bolso da jaqueta e abriu. Dentro havia um colar de prata brilhante e no meio um pingente com desenho que se armava em três nós laterais e superior e uma curva inferior. Ela pegou o pingente e entregou para sua amada.

— O que é isso?

— Cada nó representa uma verdade do nosso amor. O primeiro é a vida, o segundo é o desejo e o terceiro é o eterno. — Diana observou atentamente enquanto Joana apontava para cada detalhe do desenho.

— E essa curva?

— Ela determina que não importa o caminho que sigamos, sempre encontraremos uma a outra enquanto esse três nós permanecerem atados. — Diana não entendeu a fundo o significado de tudo aqui naquele momento, mas abraçou sua parceira declarando seu amor incondicional, celebrado pela união oficial entre as duas.

Ao cair da noite, Diana foi expulsa aos berros de casa. Sua mãe a amaldiçoou a chamando de egoísta e doente, as críticas sobre a filha e sua ausência nas rotinas religiosas típicas da família já haviam lhe custado castigos, mas a sua recente união lhe havia custado ainda mais, o teto sobre sua cabeça.

Desesperada e sem saber o que fazer, acabou encharcada sob a chuva batendo no único lugar em que achou que se sentiria segura. Joana a recebeu de braços abertos em seu pequeno loft e se esforçou para consolar seu amor.

Algum momento presente.

Todas as noites Diana chorava e sentia o vazio no seu coração a consumindo. Era uma agonia incessante e até seus pensamentos embaralham, era a solidão. Mas o evento da noite anterior despertou uma faísca no seu interior, do tipo que chamamos de esperança. Assim, mas cinco noites seguidas elas passou quase todas em claro, aguardando pelo momento em que o calafrio voltaria. Mas foi em vão.

Se sentindo perdida, voltou mais cedo para casa naquela tarde, os problemas do trabalho não eram suficiente para desanuviar sua mente, nem mesmo para que mudasse seu foco, afinal, poucos compreendiam a intensidade do luto. Ela caminho aos passos brandos para casa, sozinha sob a chuva surpresa que desabava sobre a cidade. Pouco antes de chegar, com o sol já escondido, relâmpagos estouraram no céu prometendo mais do que uma noite molhada, então os ventos também se intensificaram e logo Beladona estava coberta por uma tempestade.

Diana atravessou o portão correndo, protegendo os olhos das folhas e sujeiras, as escadas foram fáceis apesar de perigosamente molhadas, ela passou rápido pela porta e acabou em sua sala ofegante. Se desfez do peso que carregava em seus ombros e com o corpo nu adentrou na ducha quente.

Enquanto a água caia sobre seu rosto, por trás de seus olhos, dentro de sua mente, ela se recordava da mulher que amara. Então um estrondo apagou as luzes, Diana rapidamente desligou o chuveiro. Espiou pela porta de vidro toda embaçada, uma luz entrava no banheiro vinda da grande janela do quarto, uma sensação esquisita aflorou dentro de si, não entendeu de onde ela vinha enquanto tudo estava apagado e até a lua se escondia atrás da nuvens carregadas. Ela se enrolou na toalha e caminhou lentamente para fora do banheiro. Uma corrente de ar frio se enrolou em seus calcanhares e seus sentidos se aguçaram como com um felino pressentindo o perigo. Ela sentiu um vulto passar pelas suas costas e quando se virou deu de cara com a escuridão. Se voltou rapidamente para a janela do quarto e notou que o poste ainda iluminava do lado de fora e as outras casas também mantinham as luzes acesas.

Um estalo sobre seu ombro a fez engolir a seco o pouco de saliva que tinha sobre a língua. De repente a porta do corredor se abriu na escuridão rangendo com a dobradiça envelhecida. Diana se assustou e sentiu seu corpo todo congelar, o coração palpitava acelerado e uma confusão de medo e ansiedade se instalaram em sua mente. Imaginando o pior, ela se jogou para a lateral da cama. Então as fechaduras começaram a sacudir.

Algum momento passado.

Era em uma tarde de outubro em que Diana correu pela rua do Mercado atrás do presente perfeito. Uma balada romântica se repetia no fundo da sua mente, mas era difícil lembrar de qual música se tratava quando sua cabeça já estava saturada de estudar para as provas e ela mal conseguia se recordar da letra, apenas sabia que se tratava de um clássico. Cantarolou imitando o vocal rasgado e desafinou sem sequer notar, estava concentrada em não esbarrar em ninguém, já estava molhada o suficiente e irritada com as pessoas que caminhavam sob as marquises com o guarda-chuva aberto.

Passou a rua do bondinho e do outro lado flagrou o letreiro em néon que procurava “Retaguarda”, o sino soou quando ela empurrou a porta e logo ao seu lado o atendente já a encarava curioso por de trás do balcão. Ela passou com um sorriso estampado, pensou duas vezes antes de pedir informações.

“O que você iria dizer, Diana? Hei, moço, conhece aquela música nana na nana na na? Idiota.” pensou consigo, desviou o olhar e mergulhou entre os inúmeros títulos de vinil que preenchiam diversas mesas enfileiradas. Cash, Stigers, Pearl Jam, Wu-Tang, Nas, Jobim, Coltrane, Muddy e tantos outros de seus favoritos enchiam seus olhos e seus dedos tremiam na vontade loucas de abraçar todos e levar para casa, mas assim como o tempo, seu dinheiro estava curto e ela sentia que precisava encontrar aquele disco com a música especial.

— Nana na, na nana na! — Ela cantarolava se esforçando para que ao menos uma palavra saísse e lhe desse uma pista do que realmente buscava.

Correu os olhos em outra fileira e então outra, deu uma pausa e fitou toda a loja descansando a mente por um segundo. O ambiente estava vazio, não haviam muitos amantes de vinil como antes, na era dos streamings, as mídias materiais se tornaram obsoletas e apenas objeto de prazer para colecionadores, apaixonados por velharias e pessoas que queriam apenas decorar a sala. As paredes expostas da loja exibiam tijolos antigos e desgastados, um charme único e old school que relembravam os antigos porões onde rodas de punks se formavam sob acordes desafinados e muito antes disso as pessoas se reuniam para beber discutindo seus direitos como civis aos embalos de acordes perfeito de blues. A fiação se escondia dentro de canos pretos expostos que tornavam o cenário mais industrial, assim como as luzes em led bem trabalhadas se escondiam nas extremidades das mesas e balcões criando um clima mais ameno e nostálgico.

— Ac-Dc, A-Ha, Zeppelin, isso é uma bagunça! — exclamou ela baixinho enquanto continuava sua busca frenética. — Stones, Pink Floyd, Aerosmith… — Ela parou. Seus dedos então correram por três álbuns.

“Aerosmith!”

Ela agarrou o vinil e correu até a metade da loja. Sobre uma cômoda antiga havia um rádio antigo, assim como quase tudo dentro daquele lugar. Diana não conseguia desfazer o sorriso de orelha a orelha, sacou o vinil da embalagem com cuidado e colocou no rádio, levou a agulha até o disco e puxou o fone. “I could stay awake just to hear you breathing…” A música tocou lhe causando arrepios, ela mordeu os lábios ansiosa e feliz por ter encontrado a música que queria, tirou o vinil e guardou novamente na capa, foi até o balcão e saiu correndo para casa, ainda sob a chuva.

Subiu as escadas eufórica, mal conseguia segurar o molho de chaves com as mãos molhadas, abriu e fechou rapidamente, percorreu o corredor já avisando Deus e o mundo que havia chegado.

— Amor! Onde vocês esta? Encontrei algo perfeito para o seu aniversário! — Ela largou a bolsa e foi apenas com a sacola até o quarto, puxou a porta de correr e flagrou Joana estirada sobre a cama aos prantos. Largou a sacola com o vinil no chão e se jogou sobre a cama abraçando e parceira.

— O que houve? Joana!

Joana tentou responder, mas não conseguia conter as lágrimas e os soluços. Diana a apertou forte contra seu corpo demonstrando estar ao seu lado para tudo. Joana então puxou um amontoado de papéis amassados e entregou para Diana, que por sua vez desamassou e começou a ler.

Conforme seus olhos corriam pelas linhas, se enchiam de lágrimas, de repente sentiu como se seu mundo estivesse prestes a desabar, o teto parecia ter caído sobre seus ombros e o medo foi tamanho que não lhe cabia no coração. Ela apertou Joana ainda mais, dizendo repetidamente:

— Eu te amo!

Algum momento presente.

O barulho a deixou aterrorizada e ela começou a gritar, então tudo silenciou exceto pelo vento que cantou passando por debaixo da porta, novamente um calafrio correu pela sua espinha e um ar gelado a fez se encolher toda nos cobertores. Abraçou os joelhos e permaneceu agarrada a si mesma por longos minutos. Estava confusa e não sabia mais se era medo ou puro desespero por há tanto tempo estar se sentindo desamparada.

Sem notar a temperatura voltou ao normal, ergueu os olhos sobre os braços cruzados e percebeu que não havia nada na escuridão além de suas alucinações. Se levantou devagar, enrolando uma coberta no corpo já aquecido. Notou então que a janela de seu quarto deixava a luz de fora passar fraca e ao olhar mais de perto, flagrou os vidros embaçados e no meio de um deles, havia um desenho familiar. Se aproximou, algumas lágrimas escorreram pelo seu rosto e ela apertou forte seu pingente. Na sua frente, desenhado no vidro estava o mesmo desenho que carregava em seu colar.

No dia seguinte, sentada na sala de seu médico, não conseguia encontrar palavras para nada, e se manteve quase toda a sessão em silêncio fúnebre.

— Você ainda tem tido as crises, Diana? — perguntou o médico. Ela nem lhe deu atenção. — É importante manter a medicação. — Ele insistiu.

Ela voltou os olhos para ele, fitando o rosto magro e alvo, jovem, mas visivelmente surrado pelos efeitos de uma juventude conturbada. Os óculos encaixavam mal sobre o nariz, um pouco tortos. As mechas bagunçadas insistiam em cair sobre a testa, se desprendendo do penteado da cabeleira rala. A camisa azul contrastava com a calça escura, ela sabia que ele não tinha tato pra estilo, mas era um bom médico e só isso importava.

— Ontem, não sei. Algo tem acontecido. — Ela tentou se expressar com a voz trêmula.

— Continue, Diana. Vamos descobrir juntos — falou solícito.

Ela o encarou com um peso no olhar. — Seria possível eu parecer mais louca do que já sou? — perguntou. Ele exibiu um meio sorriso, que se desfez ao perceber a seriedade da moça.

— Você não parece louca, apenas tem seus problemas. Todos temos — disse ele tentando se ajeitar na poltrona.

— Ser louca talvez não seja um problema, quem sabe o louco não é você e todos que estão lá fora. — Ela divagou. — Talvez eu esteja louca, sim! — completou com lágrimas nos olhos.

— Seja como for, estou aqui pra ajudar, Diana.

— Joana! — Ela soltou entre um soluço e outro. — Sinto que ela está mais perto ou por perto, não consigo entender.

— O luto é um processo difícil, às vezes a solidão nos castiga quando achamos que já superamos tudo. — Ele tentou argumentar.

— Eu sei que não superei, todos os dias sinto tanta falta dela, que parece haver um buraco me consumindo por dentro. Sugando tudo para o nada.

— Esse buraco, você acha que é apenas a ausência dela ou ainda há mais coisas que possam ter influenciado a sua existência?

— Um pouco de tudo, mas o que aconteceu foi diferente, eu senti a presença dela. — Ela disse e ele fitou a moça com um olhar sério.

— Essas sensações podem também ser causadas pelo estresse, Diana. Eu notei pelas suas expressões que você não tem dormido bem, acho que…

E o médico apenas continuou.

Diana sentiu a descrença nas palavras do médico, mas não podia o culpar pelo ceticismo, ela mesmo não sabia se o que havia acontecido era real. O médico insistiu com as palavras e antes de dispensar ela, decidiu aumentar a dose do remédio. Diana não contestou, de certa forma, sequer se deu ao trabalho.

Algum momento passado.

Oito meses. Muita luta e dor. Oito meses foi o tempo que levou para o tumor consumir tudo, menos a esperança de Joana. O coquetel experimental a enjoava todas as manhãs quando tinha que beber em jejum, mas ela se esforçava para não regurgitar, fazia trocadilhos tentam abstrair e desfazer a faceta de medo que Diana tentava a todos custo esconder sem sucesso.

— Seja como for, estou satisfeita por ter tido você ao meu lado! — Ela dizia para a parceira que travava uma guerra interna todos os dias ao tentar se manter firme e ser o suporte da pessoa que amava e por infelicidade da vida, escorregava por entre seus dedos.

Joana sempre esteve um passo à frente e havia garantido um bom plano de saúde desde que iniciara sua carreira profissional, como sempre esteve sozinha, sabia que se um dia precisasse, não poderia contar com ninguém e apesar de estar errada nesse ponto, estar preparada lhe ajudou mais do que imaginara e ainda atendendo aos seus desejos mais profundos, ela não se tornaria um empecilho na vida de Diana, que apesar da frustração e estresse, não precisava estar integralmente presente, sua vida seguida e Joana se sentia alegre por isso.

Queria te levar para nadar comigo, ouvi dizer que esse final de semana vai ser ensolarado na praia. — Diana fitou a parceira com uma sobrancelha arqueada.

— Ah, é mesmo?

— Claro! Podíamos ir nadar, pular das cachoeiras e quem sabe descer a ladeira em Castelo de longboard! — completou Joana com um sorriso brilhante. Diana se aproximou da cama e ajudou a parceira a se sentar. Se afastou e voltou com uma bandeja cheia de aperitivos, era o desjejum.

— E o que acha de pularmos de pára-quedas também? Mas tem que ser no Caribe.

— Sim! Mas sem pára-quedas, para Mergulhar direto naquelas águas cristalinas! Meu Deus! Deve ser uma delícia — comentou animada.

— Claro! — Diana soltou em tom sarcástico. — Sem pára-quedas vai ser uma delícia mesmo, mas para os bichos que vão comer os restos do seus miolos estraçalhados quando bater contra a água igual uma pedra contra o chão!

— Ora! Não seja estraga prazeres, e se eu mergulhar de ponta? — rebateu Joana.

Diana deu uma longa gargalhada, passou a mão sobre o cabelo da parceira. “Imagine como seria pregar uma agulha contra uma parede de concreto”, completou.

As duas se encararam com os olhos arregalados e riram divertidamente sem entender como o assunto foi parar naquele ponto.

Joana interrompeu a risada com algumas tossidas intensas, Diana a ajudou com um lenço e logo o clima foi quebrado por uma cena desconfortável que havia se tornado parte do seu cotidiano, sangue no lenço. Diana então a abraçou forte e lhe beijou docemente sobre a testa.

O nono mês chegou com o peso dos oito que passaram acumulados. Joana foi internada às pressas, alguns órgãos falharam. Diana entrou desesperada no hospital, mesmo sabendo que o tempo da pessoa que tanto amava estava chegando ao fim. Por dias seguidos ela conseguiu dispensa do trabalho e ficou ao lado da parceira se afastando apenas para o banheiro e em busca de comida, quando as enfermeiras não lhe traziam algo na tentativa de confortar o coração entristecido da moça.

Era final de tarde, Joana acordou elétrica, com movimentos limitados por causa das cirurgias, ela descarregou tudo como pode, em palavras.

— Eu sonhei com minha mãe.

Diana a encarou curiosa, nunca havia falado dos pais de Joana, não que não quisessem, mas ambas carregavam dores do passado, e preferiam viver apenas a alegria do presente.

— Como ela era? Como foi?

— Eu tenho só uma lembrança dela. Estávamos em um parque, na Central, o dia estava nublado, mas o sol iluminava vez ou outra dando as caras entre as folgas das nuvens. — Ela deu uma pausa e esticou o braço puxando a água da bandeja ao seu lado. Diana se levantou e ajudou a parceira a se inclinar para beber. — Usava um turbante, da cor que amava, azul ciano. Era lindo, detalhado em tons vermelhos e dourado, acentuava a beleza na cor da pele, sabe? As pessoas a olhavam descrentes que pudesse existir alguém tão bonita passando por entre eles… meros mortais! — Ela exibiu um sorriso frouxo. — Os cachos emaranhados saltavam como molas na parte de cima e seus olhos falavam por si quando passavam por alguém. Lembro do calor do seu colo, do peito macio apertado contra meu corpo, do cheiro de morango misturado com rosas, da sua voz doce como uma serenata. — Lágrimas escorreram por suas bochechas.

— Vocês são lindas. Achei que não lembrasse tão bem dela, pela idade que tinha quando tudo aconteceu.

— Eu lembro, sim. Infelizmente lembro também de quando aconteceu. Mas não quero lembrar, por favor.

Diana contraiu o cenho sentindo o amargo do passado que também carregava, pegou na mão de Joana com força. — Minha mãe era uma pessoa difícil, sabe? Mas era linda também, acho que temos sorte — comentou deslizando os dedos pelo próprio rosto, elas riram juntas. — Agora, meu pai, sempre foi estourado. Trazia sofrimento pra dentro de casa, normalmente em litros e bebia em martelos, como ele dizia. Ele trabalhava o dia todo e quando chegava em casa qualquer motivo era suficiente para ele ficar violento e agressivo, minha mãe sofria nas mãos dele e eu não podia fazer nada. — Diana suspirou profundamente, pescando lembranças nada agradáveis. — Nunca entendi o motivo dela continuar lá, suportando aquilo. Meu tio, por vezes, interveio, mas ela dizia que aquele era seu lar, seu lugar. Depois de um tempo, eu ainda era pequena, ela começou a frequentar a igreja, parecia que estava buscando algo no que se apegar ou alguém pra gritar socorro. E aquilo ajudou… até certo ponto. Aos poucos ela parecia estar se entregando para pensamentos e crenças que nunca aprovaria e em um dado momento ela havia se transformado em uma pessoa com características que sempre repudiou.

— Meu pai… — Joana tentou desenvolver mais palavras, mas lhe faltavam argumentos quando se tratava do pai. — Ele era como os outro pais… — Eram apenas suas verdades. O casal permaneceu ali durante algumas horas, discorrendo diversos outros assuntos, tentaram a todo custo afastar os pensamentos ruins e se divertiram especulando sobre artes pelas quais compartilhavam paixão e sobre as possibilidades da vida.

Pouco tempo depois, durante uma noite fria, Diana ainda estava lá, seus olhos pregados descansavam com a luz baixa do quarto, estava há noites acordada e já não aguentava tanto quanto imaginava. Joana acordou no final da tarde e ficou apenas observando sua amada descansando, fitou os lábios carnudos se moverem sutilmente em reflexo aos estímulos do sonho agitado que devia estar se passando na cabeça de Diana, apreciou a beleza nos contornos do rosto ao brilho do cabelo que se esparramava como a cauda longa de um vestido franzido, suspirou por não saber lidar com o amor que guardava dentro de si e apenas continuou ali, contemplando a sorte que o destino havia jogado em seu caminho.

Quando Diana acordou, Joana implorou para respirar ar puro.

— Eu quero ir pra casa — disse Joana.

— Está louca? Você precisa ficar aqui.

— Meu amor, eu apenas quero ir pra casa. Posso descansar lá da mesma forma que aqui, só quero sair desse lugar. — Diana entendia a aflição, estavam há dias no hospital e apesar dos contratempos, Joana estava apenas em observação já há algum tempo. Ela pediu pelo médico, ele veio até elas para conferir se estava tudo bem, confirmou que indo além do esperado, parecia que Joana estava recuperando uma fração da sua força e então pediu apenas mais um dia para se certificar de tudo. Convidou Diana para uma conversa apenas entre eles, aproveitou para oferecer um lanche para a moça, ele sabia que ela estava ansiosa e não se alimentava como deveria, aquilo caiu como um bom pretexto. Joana pediu apenas por algo quente para tomar, enquanto os dois se retiravam.

Juntos, caminharam até o refeitório, enquanto Diana decidia pela refeição, o médico se aproximou.

— Como você está? Notei que tem passado muito tempo aqui dentro.

— Não posso deixá-la.

— Eu entendo — disse ele expressado sua empatia. — Ela está sendo bem cuidada aqui, é nossa paciente, em nossa casa, mas você, também precisa continuar se cuidando.

— É um momen… — Ela deu uma pausa ao sentir a emoção aflorar dentro de si quando refletiu sobre os dias que se passaram. — É difícil, apenas.

— Você precisa se alimentar também, sair ao sol de vez em quando. — Diana apenas o observou enquanto o médico expressava sua preocupação. — Você sabe que estamos fazendo tudo o que podemos pela Joana, mas o tumor é agressivo, você precisa estar preparada! — A moça encheu os olhos de lágrimas e o médico a abraçou gentilmente tentando dar o mínimo de apoio.

Ele a soltou e ajudou a escolher uma refeição rápida. — Eu vou liberar vocês. O soro deve ser mantido, mas essa manutenção é simples e automática, basta repor as bolsas. Fora isso, acredito que ficar aqui só esteja lhes trazendo mais sofrimento, talvez em casa vocês se sintam mais confortáveis!

— E se algo acontecer?

— Infelizmente, Diana, não há mais surpresas para esperarmos. Dia sim e dia não enviaremos alguém para conferir os medicamentos e daqui três dias nos vemos para o novo Ciclo do tratamento.

Diana apenas concordou. Iniciou e finalizou o lanche com o médio, então voltou para o quarto trazendo chá para Joana.

No dia seguinte, elas foram para casa, Joana esbanjava alegria por estar em casa, sentia falta do cheiro da madeira dos móveis, dos tons frios do concreto exposto nas paredes e das janelas alta que iluminavam como se o próprio céu a observasse por entre uma fresta. Seguiu o ritual que tinha de medicamentos e alimentação no hospital, mas nas noites que seguiram, ela implorava ao menos por uma pipoca e bacon para acompanhar o próximos episódios das suas séries preferidas.

O sol se punha após um dia diferente dos demais. Um calor incomum, por assim dizer, não que em Beladona as estações fossem organizadas, era sempre uma bagunça, mas foi uma surpresa para a cidade que estava se acostumando com o frio e as chuvas. Joana passou o dia descansando, no anterior gastou toda sua energia com conversas, jogos e muita leitura, filmes e comilanças. Enquanto sua parceira estava organizando algumas louças na cozinha, ela olhava o laranja e o rosa que escapavam no horizonte pelos reflexos da janela.

— Como está o jardim? — Ela perguntou um pouco rouca, tivera uma crise feia de tosse pela manhã e duas convulsões pela tarde, não estava totalmente recuperada e Diana sentia seu coração se partir aos pedaços com sua impotência diante de tudo o que acontecia.

— Ele está lindo, as folhas amareladas, algumas flores ainda aguentando firme.

— Minha orquíde…

— Bem, bem, ela está bem. Na verdade achei incrível ela estar viva, não tem nenhuma outra flor daquela cor inteira. — Diana refletiu por um momento.

— Ela é especial. Minha cor favorita, minha flor favorita. É parte de mim.

— A teimosia também. — Ainda refletindo sobre a orquídea, ela notou nunca ter visto a flor em transições, nem um botão. Ela sempre estivera lá, firme, exuberante e tímida. Realmente como Joana.

— Eu quero vê-la — disse Joana, a parceira hesitou por um momento.

— A temperatura está caindo, meu amor, não vai ser bom para você.

— Você acha que minha preocupação é com a temperatura?

Diana aceitou o pedido. Saiu da cozinha e ajudou Joana a se vestir e se arrumar na cadeira de rodas. Elas saíram juntas do apartamento para o elevador e então ao terraço, quando a porta se abriu, foram surpreendidas por uma paisagem deslumbrante. O sol ainda despontando no horizonte mantinha os tons quentes em parte do céu, esses mesmos tons refletiam nas paredes molhada e no chão, jogando uma luz discreta sobre o ambiente. Pouco menos da metade do céu se preenchia com um azul escuro, em tom de cobalto, e nele haviam incontáveis pontos brancos que brilhavam discretos querendo dar as caras como luzes de natal. O jardim exibia graça com arbustos pequenos espalhados para lá e pra cá e uma árvore baixa, o lugar havia sido realmente planejado com muito carinho e inteligência. Sob a árvore havia uma cobertura curta amparada por uma coluna e um banco de madeira, elas se aproximaram do banco, Diana tirou uma das peças que vestia e enrolou em descanso sobre a madeira úmida, parou Joana ao lado e se sentou.

— O pôr-do-sol. Há quanto tempo não vejo isso?

— Bom, desde que você foi internada? — retrucou Diana.

— Não. — Ela foi interrompida por um desconforto no peito e após algumas tossidas, continuou:

— Sequer me recordo da última vez, durante o último período talvez.

— Eu costumava ir ao píer na adolescência, fugia das aulas chatas e ficava observando aquela bola amarela gigante se escondendo atrás do mar.

— Ele é um covarde… — cochichou Joana se referindo ao sol, as duas riram.

O sol se pôs completamente e mesmo assim elas permaneceram ali, ficaram de mãos dadas por algumas horas quebrando o silêncio em raros momento enquanto contemplavam o céu estrelado.

— Eu sonhava em pegar uma estrela, quando criança, talvez guardar em um pote… — Diana suspirou dividindo uma lembrança que lhe veio de repente. — Quem sabe no bolso. Já imaginou… — Ela parou. Seu coração acelerou e as palavras faltaram.

Se jogou de joelho em frente a Joana.

— Joana!

Acudiu ela segurando a mão da parceira. — Não, não. Joana!

Insistiu agora aos prantos. Ela passou as mãos sobre o rosto de Joana, a moça estava estática, com o olhar nas estrelas.

— Meu amor!

Ela gritou abraçando a mulher que amava e naquele momento, deixava de estar lá. Diana sentiu o chão se desfazer sob seus pés, seu estômago dobrou por dentro e uma dor indescritível tirou o fôlego até do último átomo que compunha seu corpo. Aos prantos ela tirou o celular do bolso e fez a ligação que mais temia, tentando controlar o soluço, mas aos poucos sendo consumida pelo vazio que começava a crescer dentro de si.

Algum momento presente.

A tempestade da noite se acalmou em forma de garoa fina.

Diana despertou de repente com uma sensação agridoce, ouviu um sussurro chamar pelo seu nome, mas não havia nada no vazio do seu quarto, exceto ela. Se levantou quando ouviu novamente, agora mais intenso, mais próximo, mais familiar. Seu coração acelerou quando sentiu os pés tocarem a madeira fria do chão, puxou o moletom embolado sobre o criado mudo e vestiu rapidamente, seus pés entraram como uma luva no par de tênis com os cadarços esgarçados. Ela olhou em volta coçando os olhos.

— Diana!

Ouviu novamente, um tom doce e carinhoso, notas apaixonantes como de Joana.

Seus olhos se encheram de lágrimas e um alívio por ter certeza de que não estava ficando louca a fez ignorar o calafrio que lhe subia pela espinha. Ela flagrou que a chuva já havia dado trégua e saiu sem pestanejar do quarto acompanhando o eco que a guiava pelo corredor até a porta. Hesitou ao tocar na maçaneta, um lapso de sanidade a fez questionar aquele momento.

— Foda-se! — Ela pensava com si mesma dispensando qualquer dúvida. Girou a maçaneta e empurrou a porta.

Pela escadaria até o terraço ela seguiu ansiosa ainda acompanhando a voz que a chamava e agora se completava com o cheiro do corpo de Joana, a cada passo, Diana se deliciava com as lembranças que a abraçavam com uma força sobrenatural. As luzes se acendiam fracas atiçando sua curiosidade, seus lábios estavam tensos e presos por uma mordida leve. Ela percorreu o caminho o mais rápido que pôde e logo estava na porta para o terraço. Ela forçou a abertura da porta velha e enferrujada, com os olhos apertados contra as luzes ainda acesas das ruas e dos painéis de neon que rodeavam o prédio baixo. Saiu pela porta quase tropeçando, deu de cara com o nada, então a voz lhe chamou outra vez sobre seu ombro.

— Diana!

Ela se voltou para o lado onde o sol nascia e seus olhos se preencheram com uma luz dourada angelical, o calor cobriu seu corpo e acariciou sua pele como um toque humano, desdenhando a garoa fina que insistia a cair. O dourado se expandiu em uma luz branca criando uma confusão temporal visual, tornando o dia e a noite um momento só.

Dentro desse deslumbre hipnótico uma silhueta emergiu se aproximando suave do corpo de Diana. A silhueta primeiro tocou suas mãos, ela podia sentir o calor emanando em sua palma, logo os olhares se encontraram.

— Joana… — Ela tentou, mas não havia mais nada para dizer.

— Eu sempre estarei aqui para você — disse Joana levando as mãos em volta do rosto de Diana que não se aguentava em prantos de emoção e alegria.

— Eu… Eu te amo — disse ela se esforçando, abraçou a mulher que amava como se impedisse de perdê-la outra vez.

Juntas, naquele momento único, uma segunda jura de amor foi feita.

O tempo que tiveram foi breve.

— O véu da realidade se abre por uma fração de tempo quando as pessoas dedicam seu tempo para lembrar e sentir — ela disse para Diana. — É assim no Dia dos Mortos.

Mesmo sabendo dos limites, seu amor era incondicional e a partir daquele dia, Diana entendeu o que era seguir em frente. Passou o pouco tempo que teve engrandecendo e fortalecendo o elo atemporal que tinha com Joana e prometeram estarem lá todo ano até que fosse o último em vida, para então poderem vivenciar o amor que as manteve unidas até mesmo após a morte.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

* Deixe seu comentário, ele será lido com carinho!
* Pode descarregar palavrões, brigar e praguejar, sinta-se em casa rs.
* Volte sempre o/