Deixa eu te falar que é incrível como a criatividade encontra meios inesperados para criar diálogos tão densos. Acho que isso resume Lamb, longa de estreia do diretor Valdimar Jóhannsson, que já participou assumindo outros cargos nas produções de filmes como Prometheus, da franquia Alien e o brilhante Star Wars - Rogue One. E bem que podíamos falar de Star Wars, o que você acha para um próximo episódio?
Lamb foi classificado como terror, mas podemos tomar como ultraje não atribuir mais camadas pra esse filme, que narra a história de um casal, Maria e Ingvar, que vivem em uma área rural da Islândia, e são surpreendidos por uma criatura híbrida - ovelha e humana - nascida de uma de suas ovelhas, e acabam a adotando.

Isso foi breve, mas necessário para explorarmos juntos como este longa se desenvolve.
Esse filme traz um tipo de história para poucas pessoas, pois faz uso constante de alegorias e filosofias para pôr na mesa perspectivas críticas, mas a maior e mais constante é o luto, que se faz presente do início ao fim e nos sufoca com uma mistura ácida de curiosidade e tensão.
Em uma entrevista no canal PictureHouse, Noomi Rapace, que interpreta Maria, diz:
[...] the way you tell this story, it really allows there's so many things going on underneath, it's almost like a volcano, you can see just a little bit of smoke or just a little bit of, you know, lava coming out and you realize like wow! There's a whole like fire field, there's like a bomb going on underneath.
Em uma tradução livre, seria algo como: […] a forma como conta a história, permite realmente que hajam tantas coisas acontecendo sob ela, é quase como um vulcão, podemos ver apenas um pouco da fumaça ou um pouco de lava saindo e você se dá conta, wow! Há todo um campo de fogo, é como uma bomba sob ele.
Bom, agora posso dizer que esse comentário reforça a ideia de que essa história tem muito pra dizer, e podemos tentar dividir o filme em três atos.
No primeiro, a narrativa nos introduz na vida do casal, são minutos de quase silêncio absoluto entre eles, uma ferramenta que nos mostra que existe uma ferida na relação, algo complexo, e ela chama-se Ada, a filha criança que o casal perdeu e ainda sofre muito com o luto.

Então, a fotografia do filme nos transporta para imagens abertas da imensidão da natureza, e começa a lapidar o que ainda não foi dito, que o silêncio entre Maria e Ingvar talvez seja a sua forma de respeitar o luto um do outro, que apesar de estarem ainda juntos, há um espaço enorme entre eles e uma evidente solidão, algo com que cada um tenta lidar na sua maneira. A cinematografia nos entrega isso, tons cinzentos e frios de tristeza e monotonia, assim como a pequenina casa no meio da vastidão rural da região, também é um claro reflexo dessa solidão.

A segunda parte é uma mistura de esperança e desespero. Uma figura monstruosa surge anônima no celeiro, causando agitação entre as ovelhas, logo, uma delas dá a luz para uma criatura híbrida. Meio humano, meio ovelha. Maria e Ingvar a tomam como sua criança e a criam como tal, a chamando de Ada, assim como a falecida filha. A complexidade nessa parte é desesperadora, e ao mesmo tempo temos a beleza da originalidade e criatividade de Johannsson.

Maria e Ingvar tomam a criança para si, enquanto os dias passam e a ovelha-mãe começa a agir bizarramente e berrar o tempo todo para ter sua cria de volta. Veja, quando o casal pega a criança (sim, vamos chamar assim para sermos práticos), até mesmo a fotografia muda, assumindo aproximações mais íntimas, cores mais quentes, refletindo a conexão se formando novamente entre o casal, e eles não se importam com o fato de não ser uma criança humana ali, eles ignoram a adversidade para preencher um vazio, e Maria, principalmente, toma com tanta ferocidade o papel de mãe, que executa a ovelha-mãe sem piedade, tirando de vez a figura que ela considerava um potencial perigo para sua família.
Há tantas camadas nessa parte do filme, que a gente se confunde tentando separar elas, mas é notável como podemos substituir a criança por drogas, sexo, roubo ou alguma compulsão, digo isso, pois ela é retirada violentamente da sua natureza - ela ainda é uma ovelha, e colocada na vida do casal para remediar a dor da perda.

Ainda aqui, esse ato de violência contra a ovelha/criança, é algo comum de vermos hoje em dia, como pessoas que tratam seus pets como pessoas, retirando a natureza deles, isso cria uma confusão e frustração no animal, que sequer tem uma referência do que é ser um animal da sua espécie e logo ele é colocado como uma pessoa, sem ser uma, descaracterizando sua identidade, seu instinto.
Podemos também interpretar Ada como aquela pessoa que não se encaixa no lugar onde está, que permanece em um momento de não compreender plenamente a sua identidade, de descoberta, aquele sentimento de que há algo mais, de que é diferentes, e apesar do amor pela família, ainda há algo errado.
O terror também pode se refletir no tio de Ada, irmão de Ingvar, que quando entra no filme, faz claramente o papel da pessoa ordinária. Ele não entende aquilo, também fica em choque pela naturalidade que o casal tem em relação a criatura, e não se trata de uma ilusão, mas de uma escolha, eles escolheram tomar ela como uma criança, como algo normal, mesmo sabendo que estava errado. O irmão, com o tempo acaba cedendo e até mesmo cria um vínculo com Ada, mas no final, aquilo tudo é demais. Porém, a imagem que ele deixa é algo semelhante a alienação, pois por mais que Maria e Ingvar estivesse sofrendo, perdidos e iludidos, foi certo o irmão apenas aceitar a verdade deles? Ou ele deveria ter tentado abrir seus olhos para o real? E então isso nos guia para a terceira parte do filme.

Assim como Maria tomou da natureza, a natureza tomou de volta. O acerto de contas é um retrato do destino implacável, no qual cada coisa tem seu lugar, seu rumo natural e não adianta tentar mudar. A criatura anônima do celeiro se mostra, um híbrido homem ovelha que surge para acertar as contas e levar a sua filha. Gosto de pensar que o final desse filme ilustra a contemplação, o momento final de evolução da Maria e sua compreensão sobre o quão definitiva é a natureza.
Acredito que Valdimir tenha conquistado pela originalidade, a sua narrativa é lenta, mas necessária. É curioso como a subjetividade nas expressões artísticas possam tomar tantas proporções, e claramente Lamb é um filme que sabe explorar isso.
Por fim, segue alguns links interessantes

Ending Explained // Se você não gosta de fritar muito, tem uma conversa no Times com o Valdimar sobre as intenções de Lamb
A24 // O estúdio de Lamb também é responsável por outras produções INCRÍVEIS e parte de um princípio indie, e isso se reflete fácil na lista de direções em suas produções. Não conhece o estúdio ainda? Se você ama design como eu, além de cinema, vai se apaixonar pela apresentação!
Quer assistir Lamb grátis? // Lamb está disponível na plataforma MUBI, um serviço de streaming super maneira que faz seleções de filmes clássicos e independentes maravilhosos. Se você não tem condições de assinar um streaming ou ter acesso a Lamb, e depois desse episódio você quer muito assistir, deixa seu e-mail nos comentários dessa newsletter que eu mando um gift do MUBI, isso aí, um invite único para você poder assistir Lamb.
Ando lendo muitas newsletters de pessoas incríveis com muita coisa maneira pra contar, então decidi aproveitar esse espaço para também compartilhar essas leituras.
V de Viagem // Gostei desa leitura, pois a Carolina do O Abecedário trouxe uma perspectiva interessante sobre viagem e os sentimentos que o ser e estar proporcionam.
Depois, Antes, Agora // Mergulho pesado nas palavras da Gabriela que refletem sobre tempo, lembranças e outras perspectivas das experiências dela e com referências ótimas.
Indicação da semana


Jim Jarmusch é um diretor que me conquistou com Ghost Dog, um filme sobre black culture, ghetto, thug life e o caminho samurai, é, tudo isso e mais um pouco — e tem o RZA! — Jim é um diretor que aprecia simplicidade, a verdade visual nua e crua, é como um cronista chapado de ácido. Sim, é uma boa definição e se você der uma chance, vai fazer sentido. A indicação dessa semana é Night on Earth — um filme temperamental e explosivo, e nos carrega por quatro histórias diferentes sobre motoristas de táxi, cada uma erguendo pontos especificamente críticos sobre comportamento, sociedade e situações absurdas. O filme é de 1991 e tem a maravilhosa Winona Ryder deslocadíssima e o grande Giancarlo Esposito em uma performance que vai fazer seu queixo cair. Ainda não sei se vai ter um episódio falando desse filme, mas é possível.

Night on Earth está disponível no MUBI, clica aqui e te levo lá.
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