Transcrição da apresentação do projeto: “O ÓCIO NO CAOS - RESSIGNIFICAR O EXCESSO EM CYBERPUNK 2077 FRENTE À SOCIEDADE DO CANSAÇO”, no 12º Seminário Nacional - CINEMA EM PERSPECTIVA na UNESPAR em 2025.
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Hoje eu trago pra compartilhar com vocês um estudo em andamento e parte da minha dissertação. O estudo se chama: O ócio no caos e articula ideias teóricas e análises sobre experiências com o jogo Cyberpunk 2077 (2020), da CD Projekt Red, um jogo digital distópico de mundo aberto (ou seja, você pode explorar o mapa da cidade sem muitas restrições), de ação e em primeira pessoa.
Meu objetivo é analisar uma potência presente em jogos AAA (de grande orçamento) com características de mundo aberto e role-playing game, especificamente no título mencionado. Essa potência se traduz em aspectos técnicos e artísticos dos jogos que podem ser revelados pelos jogadores e ressignificados, principalmente, usados como uma ferramenta de pausa, contemplação e resistência às demandas opressivas da contemporaneidade, como o filósofo Byung-Chul Han aponta na sua obra Sociedade do Cansaço, e é daqui que a gente começa.
A Sociedade do Cansaço
Em Sociedade do Cansaço (2015), Han argumenta que houve uma transformação estrutural na passagem do século XX para o XXI. Antes vivíamos em uma sociedade imunológica, organizada pela lógica da defesa contra o “outro” – o inimigo, o estranho, o negativo. Essa lógica gerava distinções claras entre dentro e fora, amigo e inimigo, e era operada, como ele observa através de Michel Foucault, por instituições disciplinares como escolas, prisões e fábricas. O poder disciplinar moldava corpos e comportamentos por meio da proibição e da normalização.
Porém, na mudança do século, com a ascensão da economia global em vários aspectos, essa lógica deu lugar pra outra: a da positividade e do desempenho. Agora, o “outro” é assimilado e neutralizado, e a diferença perde o seu poder transformador. O indivíduo, em vez de ser controlado por imposições que estão fora, que são externas, passa a se autoexplorar, um ato voluntário. Ele se torna um empreendedor de si mesmo, criando metas sem parar, buscando otimizações e eficiência incessantes. Han reforça essa ideologia sintetizando com a simples frase “Yes, we can”.
Nesse regime, o excesso de produtividade e a sobrecarga não são problemas, mas se tornam qualidades e virtudes. Ser multitarefa é uma “habilidade” exaltada, pois o indivíduo pode fazer tudo ao mesmo tempo, eficiência de ponta, mas ignora a superficialidade de todas essas ações e de si mesmo. Essa hiperatividade produz patologias sociais como a depressão e a síndrome de burnout, definida por Han como “queima do eu pelo superaquecimento”. E a nossa incapacidade de lidar com o tédio aprofunda ainda mais essa crise, e na verdade, o tédio é quase criminalizado, quase eliminado, e assim, também é reduzida a possibilidade que temos de contemplar e criar, que depende desse tédio para que as informações e as reflexões evoluam e floresçam, ao invés de serem apenas processadas e transformadas em algo superficial, como uma máquina.
Aqui Han resgata a importância da vita contemplativa, a vida dedica à observação e ao pensamento. Nessa sociedade em que a vita activa, a ação, o fazer, é tão glorificado, voltado ao trabalho incessante, o “fazer nada” se torna um gesto político, e o olhar demorado, a resistência aos estímulos constantes, acabam rompendo essa lógica de produtividade e do desempenho, e se tornam uma forma de resistência à sociedade do cansaço.
O “não-jogo” e a contemplação
Essa reflexão sobre a sociedade e o ritmo, serve pra nós pensarmos nas ansiedade contemporâneas, e como uma busca pelo descanso, pela pausa, parece cada vez menos possível no mundo real. Porém, é aqui que eu gostaria de começar a articular o que está além, o irreal, ou o virtual.
A reflexão sobre o jogo como um fenômeno cultural precisa partir de Johan Huizinga e a obra Homo Ludens (2019), onde ele define o jogo como uma atividade livre, voluntária, e exterior à vida cotidiana, vivida como “não séria” e improdutiva. O jogo possui então essa capacidade de criar um “círculo mágico” onde as regras próprias suspendem a realidade habitual, e também permite ao indivíduo um estado de “dupla consciência”: estar consciente da ficção do jogo e, ao mesmo tempo, imerso nela. Genuinamente entregue à experiência do jogo.
Roger Caillois reforça essa dimensão improdutiva, e lembra que o jogo não busca gerar utilidade prática. Porém, no contexto contemporâneo, essa essência é constantemente corrompida pelo mercado: esportes eletrônicos, microtransações digitais, gamificação corporativa, jogos em blockcahin. Hoje, o lúdico é capturado pela lógica do desempenho.
É nesse ponto que proponho a ideia de “não-jogo” como um ato. Diferente da gamificação, onde o não-jogo é quando os elementos de jogos são aplicados em contextos não-lúdicos, o ato do “não-jogo” acontece quando o jogador, diante da estrutura do jogo, escolhe resistir à sua lógica. Ao invés de resolver os objetivos e conquistar recompensas, ele se engaja em atividades sem propósito, explorando, vagando, estando à deriva, ou apenas “estando”.
Jesse Schell, autor de The Art of the Game Design, diferencia o “artefato” (sistema de regras e mecânicas) da “experiência” (vivência subjetiva) do jogo. O “não-jogo” está neste lugar onde a experiência se torna independente do artefato. Mesmo que o sistema ofereça desafios, o jogador pode simplesmente se recusar a resolver eles. O game designer Frank Lantz, em um de seus textos, e semelhante ao Schell, distingue essas essências do jogo como a “verdade objetiva”, que são as regras e os algoritmos, da “verdade subjetiva”, que é o sentido emocional produzido pelo jogo. O “não-jogo” é uma entrega completa pra verdade subjetiva.
Ainda pensando como essa ideia de “não-jogo” já foi manifestada, em 2005, Satoru Iwata, antigo presidente da Nintendo, descreveu o jogo Animal Crossing como “não-jogo”: um espaço sem finais ou vencedores. Mas em Cyberpunk 2077, o “não-jogo” é ainda mais paradoxal, pois enquanto Animal Crossing é um jogo que não oferece missões, ou estruturas para um final ou o fechamento de uma narrativa, Cyberpunk 2077 é basicamente a máxima da sociedade do cansaço, a materialização “virtual” dos hipers: desempenho e produtividade. Resistir a esse excesso se torna um ato político dentro do próprio espaço lúdico.
Nos jogos de mundo aberto, essa possibilidade é ainda mais intensa. Uma pesquisa de 2024 demonstra (Anto et al.) que jogos dessa categorias favorecem o escapismo cognitivo e o relaxamento. Em Night City, a cidade de Cyberpunk, isso se manifesta em uma espécie de flâneur digital, inspirado por Walter Benjamin: o observador que vaga sem destino, absorvendo a cidade sem uma finalidade utilitária.
Ressignificar o Excesso em Night City
Night City, como já dito, a materialização da sociedade do desempenho, é uma cidade saturada, possui arranha-céus cobertos de anúncios, ruas caóticas, periferias degradadas. O design exige atenção fragmentada também: missões, inventários, notificações e gestões constantes. O jogador é o tempo todo pressionado pra reagir. Porém, é nesse excesso que se abre uma brecha pra contemplação. Ao recusar reagir, o jogador pode transformar o caos em um tipo de white noise digital. Como o white noise, uma mistura de ondas sonoras, que neutraliza estímulos auditivos no mundo real, o excesso visual e sonoro de Night City pode se tornar um pano de fundo contínuo, e permitir uma experiência mais calma pra mente do jogador.
Coisas como observar o pôr do sol entre arranha-céus, ouvir a chuva caminhando sob o neon nas ruas, vagar pela cidade sem rumo: todos esses atos podem se configurar e ser ressignificados como uma experiência de inatividade ativa, de fazer nada, onde se está fazendo algo. sem precisar preencher um vazio, e vivendo o tédio. Essa estética caótica é como o sublime, em que a grandiosidade da cidade não oprime, mas dissolve o indivíduo em uma calma contemplativa.
Essa experiência também se expande além do jogo. No YouTube, vídeo de “walking” e “ambience” em Cyberpunk 2077, assim como outros jogos, acumulam milhões de visualizações e horas de reprodução. São geralmente gravações de longas caminhadas ou panoramas estáticos de Night City, muitas vezes com duração de 2 horas a 10 horas. Os comentários são interessantes, diversos relatos de usuários que usam os vídeos pra relaxar, estudar, dormir, mascarar os ruídos da vida real. A paisagem distópica, paradoxalmente, tranquiliza essas pessoas. No caso da cidade se assemelha a uma trilha meditativa, e o “não-jogo” atinge sua forma passiva, onde o espectador não interage, mas se aprofunda junto e contempla.
Essa prática também é uma evidência empírica e mostra que os jogos digitais transcendem o entretenimento ou o ato de jogar. O círculo mágico ganha novas dimensões e se expande em outras mídias, e se torna um dispositivo cultural de resistência às demandas da vida.
Vídeos referenciais para observação:
A ideia de “não-jogo”, permite compreender essa prática, em que o jogador se recusa a lógica utilitária e se entrega ao simples “estar”. Esse não fazer nada, assim, se torna um grande ato político e também existencial, rompendo a lógica produtiva, resgatando o tédio perdido na realidade habitual, e reencontra, mesmo que de forma tênue, as experiências da vita contemplativa. Porém, pra concluir esse pensamento, eu preciso também frisar que não é uma característica dos jogos proporcionar esse tipo de experiências, mas existe um potencial neles em que, se o jogador se permitir e buscar, ele poderá encontrar espaços que podem ser ressignificados, funcionando como esses dispositivos de desaceleração.
Por fim, em meio ao caos da sociedade contemporânea, reaprender a tediar - mesmo em uma cidade distópica como Night City - é como reaprender a existir. O ócio, longe do improdutivo, é a condição pra que possamos ter novas formas de vida e pensamentos, e na falta dessas oportunidades na realidade habitual, é dentro do virtual que elas podem existir.
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