07 setembro

Um Pixel Morreu e Chorei



Transcrição da apresentação do projeto: “UM PIXEL MORREU E CHOREI: HIPER-REALIDADE EMOCIONAL EM LOGAN (filme de James Mangold, lançado em 2017) E THE LAST OF US PART II (jogo da Naughty Dog, lançado 2020)”, no Seminário Brasileiro de Estudos em Animação - SEANIMA - 2024. Realizado online e transmitido na plataforma YouTube.

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Nesse estudo eu procuro explorar como determinados elementos da linguagem cinematográfica são apropriados pelos jogos digitais e potencializam uma experiência emocional engajante para o espectador/jogador, e para dialogar com essas reflexões eu trago a construção da ilusão de realidade como ponto de convite e envolvimento do jogador, tomando a teoria de Siegfried Kracauer na obra de Andrew Tudor, em seguida dialogo com a suspensão de descrença, de Samuel Taylor Coleridge para compreender a aceitação dos eventos e personagens, por parte do jogador, ignorando a ficcionalidade, e por fim, como os elementos estruturais conduzem a uma imersão hiper-real, a partir de Jean Baudrillard e potencializa o engajamento emocional com uma experiência mais genuína.

Logo que eu assisto a um filme, muitas vezes me pego pensando além da compreensão sobre o que assisti, mas também como fui impactado emocionalmente e por quê.

Refletindo sobre isso, eu noto que a emoção é essa força singular e onipresente, que orienta as experiências, mas também pode moldar a nossa percepção da realidade. Porém, pensar no real vai além da ‘realidade concreta’ - o que vemos, ouvimos e tocamos, e inclui a realidade criada pela arte, na qual as ideias e potências de emoções também nos afetam.

Tudor, no livro Teorias do Cinema, analisa os estudos de Kracauer e Bazin e como o realismo é revelado. Porém, especialmente em Kracauer, percebo esse passo além, flexível, sobre a “realidade de câmera”, a ilusão da realidade manipulada pela intervenção humana.

Embora seja um desvio da ideia de realismo mais puro, ela permite tolerar aspectos importantes que pode dar outras nuances ao entendimento de realidade na experiência de uma obra, algo como Tudor até exemplifica usando A Paixão de Joana d’Arc de Dreyer, onde há uma realidade emprestada do passado, com aspectos que criam uma ilusão de que aquela materialidade é real, ou como ele mesmo se refere “quanto mais convincente, melhor é o filme”.

Porém, observar a realidade a partir desse ponto da ‘empatia e virtualidade’, é fundamental para compreender que o cinema e os jogos hoje vão além e proporcionam realidades simuladas que não são apenas uma ilusão de realidade, mas possuem capacidades e potenciais independentes que se entrelaçam.

Baudrillard usa uma fábula de Jorge Luís Borges no começo da obra Simulacros e Simulação para dar início ao seu pensamento que também discorre sobre a hiper-realidade, mas para sermos mais práticos, podemos entender essa hiper-realidade observando o TikTok, onde as pessoas compartilham sua vida a partir de um lifestyle idealizado tão convincente que tomamos como verdade, que seja uma simulação ou não, não conseguimos identificar e ela torna-se a origem até ser superada.

Assim, se pensarmos os filmes de ficção e jogos digitais, mesmo havendo a distância ou falta de controle sobre o ambiente, essas mídias promovem uma conexão profunda, a ponto da gente se engajar com a obra, ignorando a ficcionalidade e vivenciando como uma forma de realidade, uma experiência genuína.

Isso funciona de modo semelhante a “suspensão de descrença”, de Coleridge, onde criamos um pacto com a obra, aceitamos a proposta como realidade, permitindo que haja uma imersão mais profunda. Ao mesmo tempo, há um duplo estado de consciência onde o espectador/jogador ainda sabe que se trata de uma ficção, mas faz de conta que é real, isso potencializa um engajamento emocional e uma entrega completa dos sentidos para a experiência, e se predispõe a vivenciar uma hiper-realidade que dilata até mesmo a percepção temporal.

Sobre a Narrativa


Olhando agora para os objetos, para quem não conhece, no jogo The Last of Us Part II, acompanhamos Joel e Ellie, que após os eventos do primeiro jogo - no qual o mundo colapsa em uma espécie apocalipse zumbi causado por um fungo, e agora eles vivem em uma comunidade de resistência. No primeiro jogo nós vemos Joel perder a filha e a construção de uma relação paternal com Ellie, que chega até ele órfã. O segundo jogo se passa alguns anos depois, encerrando o ciclo de Joel e colocando Ellie em sua própria jornada, agora por vingança.

O filme Logan se passa em um futuro distópico onde os mutantes e os X-Men foram quase extintos e são caçados por uma corporação. Logan, ou Wolverine, está velho e doente, e sobrevive de maneira fútil como motorista de limusine. Ele tem o caminho cruzado por Laura, X-23, uma criança que tem poderes semelhantes ao de Logan, que assume a responsabilidade de levar ela até o Canadá. Durante a jornada a relação deles se desenvolve a ponto de criar uma laço emocional profundo e assim como The Last of Us, uma conexão familiar, paternal.

As semelhanças narrativas das duas obras destacam o potencial em gerar engajamento, ilustrando como elementos formais podem ser aplicados para despertar empatia em ambas as mídias. Porém, nos jogos há uma ruptura na experiência narrativa: onde há o controle e também sua ausência, que é cuidadosamente trabalhada para não retirar o jogador/espectador da imersão.

Tem uma pesquisa interessante de Bigogno, Rêda e La Carretta de 2017 que divide a narrativa em duas formas: embutida, semelhantes aos filmes e nos jogos conhecidas como cutscenes, onde não temos controle sobre ações ou quando temos não afetam a estrutura pois são pré-roteirizadas; e a emergente, que é atrelada às ações do jogador, de maneira ativa, gerando diferentes caminhos, resultados, sentimentos e sensações sobre os mais variados aspectos do jogo.

Nos jogos, a narrativa embutida tem um importante papel na experiência do jogador, pois ao tirar o controle, permite que ele tenha uma experiência mais objetiva e profunda da narrativa, sem a abstração das tensões decisivas, semelhante a experiência cinematográfica, e também dando oportunidade de um outro tipo de atenção ao jogo.

Sem essas ‘pausas’, a narrativa poderia facilmente se fragmentar e enfraquecer a carga emocional.

Cenários caóticos como nessas obras se tornam cativantes à medida que a narrativa revela camadas de complexidade emocional – que funciona para os dois lados, a obra e o espectador. O filme, com suas ferramentas: a narrativa, estilo, fotografia, trilha, elenco, etc, constrói uma reprodução de ‘realidades’ fantásticas, mas concretas em sua experiência de empatia.

Enquanto o jogo, mesmo mais artificial, se aproveita do tensionamento imersivo a partir da dilatação temporal do engajamento do jogador, e proporciona uma experiência prolongada onde a narrativa ultrapassa a realidade, e cria uma espécie de conexão emocional que faz a experiência do fantástico parecer mais genuína.

Fazendo um parênteses para o Medium


Nos jogos Triple A, de grandes empresas e orçamentos, a imersão é estimulada também por meio de uma arquitetura operacional semelhante ao cinema, com equipes dedicadas a narrativa, estilo, fotografia, trilha sonora, elenco, etc.

A profundidade desses jogos é construída a partir de técnicas e teorias oriundas do cinema, definindo o que hoje chamamos de “cinemático” nos jogos, como por exemplo o ‘time cinemático’ da CDPR, produtora do jogo Cyberpunk 2077 e a classificação de tantos trailers que dominam a atenção em grandes eventos de jogos.

Outro fator é o potencial da representação estética da realidade, possível por meio de softwares e hardwares avançados, as qualidade gráficas são impecáveis e podem confundir espectadores sobre o que é um ‘real’ ou ‘avatar’.

A Ninja Theory, desenvolvedora do jogo Senua’s Saga, tem explorado esse potencial com o MetaHuman Animator da Unreal Engine, com a criação de personagens ‘fotorrealistas’ que transcendem o referencial e ultrapassam os limites da realidade visual.

Sobre Montagem e Som


No estudo também tento me aprofundar em aspectos mais formais, como a análise da montagem, ritmo e som. Em The Last of Us, a cena da morte de Joel utiliza plano-sequência e também enquadramentos médios para criar uma tensão crescente e principalmente a sensação de impotência.

A câmera alterna inicialmente entre Joel, Tommy e o grupo rival, destacando o domínio de Abby, líder do grupo e uma espécie de nêmesis, e reforça a inevitabilidade do desfecho. A montagem coloca o jogador em uma posição não apenas de espectador, mas em um extremo de observador passivo, enquanto a lentidão da cena aprofunda o impacto emocional.

Quando Ellie entra em cena, a dinâmica da câmera muda, com a câmera se adaptando a sua reação de choque e a tentativa de resistir antes de ser dominada. Close-ups intensificam a vulnerabilidade de Joel e Ellie, e conectam o espectador à perspectiva dela, com enquadramentos baixos que reafirmam a impotência dela em reagir.

A cena contrasta com o Logan, onde os cortes são rápidos e a ação visceral é o que marca o confronto final. Em ambos os casos o uso de closes nos momentos finais amplificam o impacto gráfico e emocional, e destacam a resignação dos personagens e a carga dramática do desfecho com uma natureza bastante violenta. Enquanto o filme deixa o espectador com o trauma da personagem Laura, no jogo, a câmera na perspectiva de Ellie reforça a identificação emocional do jogador com a sua revolta e o desespero ao encarar a perda.

Em ambas as obras, a construção sonora segue abordagens com ritmo distinto, mas intencionalmente semelhantes, buscando intensificar seus ápices dramáticos. Na imagem nós temos a trilha de Logan acima e The Last of Us abaixo.

Em Logan, a trilha Loco Logan de Marco Beltrami, guia a tensão com uma composição crescente que culmina em notas agudas no clímax, gerando urgência, e seguidas por graves no momento da morte do personagem.

O silêncio que vem em seguida, é interrompido pelo choro de X-23, e sua voz chamando Logan de ‘papai’, amplifica o impacto emocional da cena. Em The Last of Us, a cena de Joel é marcada pela composição não oficialmente divulgada, mas vamos chamar aqui de “Capítulo 1”, que mantém uma tensão contínua.

O silêncio estratégico destaca o choro de Ellie e a agonia de Joel, antes de ser rompido por um crescente durante o golpe final. Em seguida, temos um zumbido que ofusca os diálogos, como uma emulação do choque de realidade de Ellie.

Enquanto Logan cria clímax por meio de um confronto frenético com trilha sonora mais curta e intensa, The Last of Us Part II aposta em picos dramáticos intercalados com silêncio e som baixo, e conecta diretamente as emoções do espectador à vulnerabilidade dos personagens.

A Morte Iminente


Por fim, como resultado dessas aproximações e distanciamentos, destaco a morte iminente caracterizada pela subversão do arquétipo do herói, onde a índole de ambos os personagens são postas em jogo, mas o contorno que a humanidade e mortalidade deles ganha é suficiente para que haja uma conexão emocional mais direta após tantos aspectos trabalhos em conjunto pra culminar nesse fim.

Seja no filme ou no jogo, há um diálogo entre as formas, os momentos são intensificados por trilhas sonoras que buscam tensões pontuais, enquadramentos que destacam o sofrimento e impotência, a ruptura narrativa com as expectativas de vitória. Tudo isso para tornar a experiência profunda e hiper-real e o engajamento emocional mais genuíno.

Sei que existem outras formas de se compreender a emoção, o impacto audiovisual, mas minha intenção também está em tentar pensar e discutir essas outras possíveis formas de como as experiências se articulam e principalmente, colocam essas duas mídias em diálogo.

A ideia desse projeto é me aprofundar na análise da materialidade dessas duas cenas, observar mais detalhadamente os planos, e aspectos como iluminação, cores e outros para buscar elementos que sustentem essa relação do cinema apropriado pelo jogo em momentos em que a narrativa deixa o jogador passivo, justamente pra criar essa proximidade.

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