Transcrição da apresentação do projeto: “SAMURAI NEGÃO: ATRAVESSAMENTOS CULTURAIS EM GHOST DOG (1999) (filme de Jim Jarmusch) E AFRO SAMURAI (2007) (anime de Takashi Okazaki)”, no 5º CINE-FÓRUM - Cinema, Letras, Arte, Sociedade e Debate, 2025. Realizado online e transmitido na plataforma GoogleMeet.
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Hoje eu quero apresentar pra vocês um estudo em andamento, chamado Samurai Negão, que se debruça sobre duas obras maneiras: o filme Ghost Dog: O Caminho do Samurai (1999), de Jim Jarmusch, e o anime miniseriado Afro Samurai (2007), de Takashi Okazaki.
A ideia é analisar a construção simbólica e histórica da figura do samurai, explorando como se desenvolveu seu papel na sociedade japonesa e então a difusão e reconstrução dessa figura no imaginário ocidental por meio da literatura, do teatro e principalmente do cinema. Também observar um pouco de como esses atravessamentos culturais acabam criando novas leituras desta figura através dessas “negociações” que acontecem entre as identidades de uma maneira complexa, especialmente a identidade negra diaspórica. E também como a mistura de culturas - japonesa, afro-americana, o hip-hop, entre outras, criam uma cultura nova, que provoca e é potente.
O Samurai
Antes de falar da desconstrução e hibridização, precisamos entender a complexidade do que está sendo desconstruído. Quando pensamos em “samurai”, é comum vir à mente imagens de honra, disciplina, lealdade e um domínio quase sobrenatural de artes marciais e da espada.
Historicamente, eles foram uma classe guerreira e também política de grande importância no Japão feudal. Ao contrário do que muitos imaginam, nem todos os samurai eram guerreiros, e nem todos os guerreiros eram samurais, inclusive, muitos samurais eram versados em artes e letras, não necessariamente no combate.
Porém, o que deu um grande destaque pra figura do samurai, como guerreiro, foi a forma como a própria cultura oriental apresentavam ele, que muitas vezes estava relacionado com mitos e lendas nas representações artísticas.
A Era samurai durou aproximadamente até o século 19, mas foi imortalizada principalmente com o cinema, que na década de 30, no Japão, já havia nomes importantes, como Mikio Naruse, Kenji Mizoguchi e Yasujiro Ozu.
Nesse ponto, dois gêneros meio que se destacavam nos filmes de samurai, originados do teatro kabuki: o chamado jidaigeki (conhecidos como “drama de época”) (geralmente representando períodos históricos como Edo, feudal ou medieval. Focado em samurais, camponeses, e conflitos sociais e políticos, e temas como honra, lealdade, e vingança. Um exemplo é A Vingança dos 47 ronin, de Mizoguchi.) E o gendaigeki (que possuem uma configuração mais contemporânea) (explora o Japão moderno ou atual, com temas urbanos e cotidianos, como dilemas existenciais, relações familiares, e industrialização. Um exemplo é Tokyo Story, de Ozu, Shoplifters de Kore-eda)
Um grande diretor do jidaigeki é Akira Kurosawa, com filmes como Yojimbo (1961). Dentro desse gênero está a figura com a representação mais tradicional que conhecemos do samurai, que é desenvolvido ainda em um sub-gênero, chamado chanbara (conhecido como “drama de espadas”).
Esse sub-gênero tem uma influência fortíssima no ocidente, presente em diversas artes e facilmente reconhecível no cinema, e permeando por diferentes formas de representação e hibridizações estilísticos, como:
👉 Kill Bill (2003), de Quentin Tarantino;
👉 Mad Max: Fury Road (2015), de George Miller;
👉 E o clássico Star Wars (1977), de George Lucas.
Um caso de influências
Porém a gente consegue encontrar talvez um dos exemplos mais marcantes dessas trocas de influências no diálogo entre o texto Red Harvest (1929), de Dashiel Hammett, o filme A Fistful of Dollars (1964), de Sergio Leone e Yojimbo (1961), de Akira Kurosawa. Esse diálogo começa com a crítica argumentando que a história noir de Hammett foi uma das principais influências para Yojimbo. Quando o filme de Leone saiu, poucos anos depois de Yojimbo, e ganhou repercussão, essa relação foi exposta envolvendo uma complicação legal… mas o ponto é, como é curioso observar como essas obras ganham forma reimaginando várias camadas dessas narrativas, e fazendo trocas com as características de cada uma, com base na sua própria cultura.
Podemos ver várias características do noir em Yojimbo, até além da estética, como a figura solitária, a subjetividade das questões de honra, essa figura anti-heróica. Assim como características de Yojimbo no filme de Leone. Tem um artigo da Flavia Brizio-Skov, que inclusive explora um pouco da relação dessas três obras, e fala sobre cinema transnacional e hibridismo, e faz um apontamento interessante que eu gostaria de destacar aqui:
“A história do filme de Leone prova que não apenas o cinema tem o potencial transnacional, como também mostra que “formações culturais são invariavelmente híbridas e impuras.”” (BRIZIO-SKOV, 2016, p. 142)
Uma outra relação interessante é visível comparando filmes de samurai—vou usar esse termo mais genérico, mas tendo em mente que não necessariamente me refiro a filmes que possuem conflitos de espadas, mas outras características dessa figura retratada nos cinemas—é como o western também trabalha aspectos da realidade misturada com a ficção, inserindo a mitologia na estrutura narrativa, e com destaque pra figura de dois heróis típico em ambos os gêneros: o herói trágico e o herói benevolente.
Herói trágico x Herói benevolente
O herói trágico, no cinema japonês, é aquele que sofre alguma injustiça, ou é vítima de algum castigo ou algo por consequência de suas ações, normalmente traído. E o herói benevolente é aquele que defende a população contra tirania ou bandidos, ou injustiças do mundo. Independente do tipo de herói, há vários temas que são retratados como motivadores das aventuras, mas nem todo filme terá conflitos intensos ou repetitivos de espadas, assim como nem todo herói vai ter sua história pautadas apenas pelo sentido comum do termo “heroísmo”, mas principalmente pelo que motiva o personagem, que muitas vezes se apresenta como um tipo de senso de justiça ou vingança.
Não à toa falamos dessa figura do samurai no ocidente, pois depois desse contexto, fica mais fácil buscar pelas hibridizações, pelos atravessamentos culturais em obras que são mais comuns pra nós. Esses atravessamentos são resultados de diferentes características, de diferentes culturas, que são meio que absorvidos, revisados e mixados em uma obra, tendo como resultado algo novo, irreverente.
Atravessamentos culturais
Essa hibridização é o resultado do processo de globalização, pelo menos em sua forma massiva e exponencial, onde é catalisada pela aproximação de culturas extremamente diferentes, que acabam em diálogos e intercâmbio entre elas. Pra pensar esses atravessamentos, Stuart Hall é a matriz deste estudo. Ele argumenta contra a ideia de uma identidade fixa, pura, autêntica, que viria de um passado ancestral comum e imutável. Em vez disso, ele propõe que pensemos a identidade cultural como algo em um fluxo constante e dinâmico.
[...] Pertence tanto ao futuro como ao passado. Não é algo que já exista e transcenda lugar, tempo, história e cultura. As identidades culturais vêm de algures, têm histórias. Porém, tal como acontece com tudo o que é histórico, também elas sofrem transformações constantes.” (HALL, 2006, p. 22)
Ou seja, algo que está sempre em processo, sendo constantemente feito e refeito. As identidades, especialmente as identidades diaspóricas - como a afro-americana, central em Ghost Dog e Afro Samurai - são formadas na interseção de diferentes histórias, geografias e relações de poder. Elas nunca são únicas, mas sempre duplas, triplas, múltiplas. A hibridização, para Hall, não é uma exceção, mas o padrão nas formações dessas identidades.
Homi Bhabha também é um autor que reflete sobre os atravessamentos culturais, muito a partir do contexto pós-colonial, com o conceito de “Terceiro Espaço”, onde o encontro entre culturas - por exemplo, a do colonizador e a do colonizado -, não surge simplesmente de uma fusão harmoniosa ou dominação.
É na emergência dos interstícios [...] que as experiências intersubjetivas e coletivas [...], o interesse comunitário ou o valor cultural são negociados. (BHABHA, 1998, p. 20)
Ou seja, há um espaço intersticial, ambivalente, que não é nem uma cultura e nem outra, mas um lugar “entre”. Esses “entre-lugares”, os interstícios, são zonas de encontro, conflito e também negociações entre culturas. Ali nascem novas formas de cultura, novas maneiras de se organizar individual ou coletivamente. É onde se negociam diferenças culturais, constroem senso de comunidade e atribuem valor às suas experiências compartilhadas.
Voltando agora nossa olhar para as obras
O filme de Jarmusch nos apresenta um protagonista fascinante: um assassino profissional negro, interpretado por Forest Whitaker, que vive recluso num telhado em Nova Jersey, mas segue rigorosamente os preceitos do Hagakure, um código espiritual samurai do século XVIII. Ele serve a uma decadente família mafiosa italiana que, ironicamente, e aparentemente, pois há uma ambiguidade nesse detalhe do filme, salvaram a vida dele.
Ghost Dog habita um "Terceiro Espaço", como coloca Homi Bhabha. Ele não é nem um samurai tradicional em seu contexto original, nem simplesmente um homem negro na América contemporânea. Ele existe nesse espaço "entre", aplicando um código antigo a uma realidade urbana moderna, violenta e multicultural. Essa identidade de Ghost, é uma “produção” contínua, nos termos de Hall, que é forjada através da tensão constante entre a disciplina e filosofia oriental que ele adota, e a paisagem sócio-racial da cidade super urbanizada e contemporânea que ele vive.
A trilha sonora de RZA, do Wu-Tang Clan, também se destaca no filme, pois é antes de tudo um reflexo claro desta identidade híbrida, que não só cria a atmosfera dessa contemplação samurai que Ghost vive, como também a própria trilha é composta por influências da cultural oriental, especialmente através de filmes de kung-fu e samurais, que são incorporadas no instrumental e também nas letras de hip-hop.
Na relação de Ghost com o Hagakure, a gente consegue observar o constructo moral do samurai sendo resgatado, uma vez que ele não é originário dessa cultura, pois Ghost vê o mundo moralmente corrupto e sem sentido e encontra no código samurai uma estrutura que permite com que ele dê sentido e significado à sua vida e ao mundo.
Também a amizade que ele mantém com o sorveteiro haitiano chamado Raymond, que mesmo um não falando e entendendo a língua do outro, a barreira linguística não se apresenta como uma dificuldade, pois a possibilidade de ambos conseguirem se relacionar sem conversar diretamente, reforça a ideia de encontros culturais e essa conexão nos espaços “entre”, que transcende a linguagem.
Se nos voltarmos para Afro Samurai, a primeira característica evidente é a mudança do ritmo. Enquanto Ghost Dog explora a hibridização de forma mais melancólica, reflexiva e lenta, Afro Samurai é inteiramente explícito, reativo e super estilizado. Esse anime é baseado em um mangá, também de Okazaki, e nos leva para um Japão feudal fantástico, onde há presença de tecnologias como celulares e ciborgues. Em um certo aspecto, podemos definir esse Japão com uma configuração neo-feudal, uma mescla do imaginário cyberpunk com o tradicional.
Nesse contexto, Afro, é um samurai negro, tem um penteado clássico blackpower e busca vingança pela morte do pai em uma jornada baseada em combates de espadas brutais. Já uma referência clara do chanbara, em Afro a hibridização é visualmente constante e presente na essência do universo diegético. O personagem Afro é uma representação visual e potente do “entre-espaços” de Bhabha, como uma fusão da figura tradicional do samurai, através do figurino, moral e habilidades, com a cultura afro-americana, muito demarcada nos anos 70, inspirado por influências de Soul Train, blaxploitation, além da ficção científica que se destaca a cada novo percurso da jornada do personagem, revelando não só a existência de armas super futuristas, como também clones, andróides e elementos sobrenaturais.
Curiosamente, a trilha também é feita por RZA, e assim como em Ghost Dog, é a materialização sonora desse atravessamento, novamente explorando o hip-hop através de melodias e letras que dialogam com suas influências da cultura, principalmente, cinematográfica oriental.
Considerações
Tanto em Afro Samurai quanto em Ghost Dog, nós conseguimos encontrar também diversas referências dos próprios modos do cinema, como aspectos da narrativa que tocam o noir, chanbara e também o western, em uma releitura mixada com a contemporaneidade, e também a fantasia futurista, onde tem essa, quase, subversão da figura do samurai. Tem uma fala de Okazaki no canal Torforge no YouTube em que ele diz:
“Eu não consigo pensar em algo melhor do que um pistoleiro do faroeste como o arquiinimigo de Afro [...]” (TORFORGE, 2008).
A visão de Hall mostra amplamente como a reinvenção contínua da identidade cultural é inevitável em um mundo globalizado, ou melhor, tão globalizado quanto hoje, onde essas trocas e influências são aceleradas pela tecnologia permitindo que as tradições sejam subvertidas e também ressignificadas. Essas duas obras servem aqui como um exemplo plástico das possibilidades que artistas exploram hoje ao abraçar a multiculturalidade, se permitindo um estado constante de experimentação, pensando sobre diferentes matérias-primas culturais e criando novos diálogos a partir delas. Em Ghost Dog e Afro, o samurai passa por isso, deixa de ser um símbolo estático do passado japonês e se torna uma metáfora mutável, dinâmica e exponencial de resistência e adaptação em um cenário contemporâneo. Essa hibridização é uma transcendência de regras e uma amostra de como as fronteiras culturais são dissolvidas.
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